Cinco séculos de judaísmo em solo nordestino

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Livro revela raiz semita da população brasileira. Por Sheila Kaplan, para o Valor, do Rio

A presença judaica desde os primeiros tempos da colonização do Brasil vem sendo estudada há muitos anos, mas agora, com os avanços da pesquisa genética, fica evidenciada a forte expressão da herança semita na composição étnica da população brasileira e, em particular, da nordestina. Pesquisar os registros históricos e culturais dessa presença é o objetivo do engenheiro e economista pernambucano Jacques Ribemboim, que, em “Históriados judeus de Pernambuco”, narra os períodos de afluência e de quase apagamento dos judeus em seu estado natal ao longo de cinco séculos.

O autor herdou essa paixão do pai, José Alexandre Ribemboim, engenheiro agrônomo que, em 1995, publicou “Senhores de engenho: Judeus em Pernambuco colonial - 1542 a 1654”. Em 2011, juntos, pai e filho escreveram “Uma Olinda judaica”, que descreve o cotidiano judaico em Olinda nos séculos XVI e XVII. Nesse livro, assim como no mais recente, cenas e personagens são reconstituídos visualmente nas ilustrações em bico de pena de Cavani Rosas.

Formado em engenharia mecânica, tendo trabalhado muitos anos na Petrobras, Jacques Ribemboim é professor titular de economia ambiental na Universidade Federal Rural de Pernambuco, além de membro da Academia Pernambucana de Letras. “Escrevo hoje como livre-pesquisador”, define, uma vez que seus estudos históricos não se dão no âmbito da produção acadêmica.

Os primeiros judeus a chegar ao Brasil eram cristãos-novos, israelitas forçados a se converter ao catolicismo, depois de sua expulsão da Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, e de Portugal por D.Manuel I, em 1496. Foi a partir de1534, porém, que vieram levas significativas, por iniciativa do donatário Duarte Coelho, detentor da capitania de Pernambuco, que atraiu e concedeu sesmarias a cristãos-novos para o plantio da cana e fabrico do açúcar.

Com esse empenho, a população de cristãos-novos aumentou rapidamente, e a vila de Olinda, fundada em 1537, passou a abrigar a primeira comunidade judaica das Américas.“Neste início do ciclo do açúcar, Olinda ocupou o epicentro do judaísmo no Novo Mundo. Mais precisamente, do criptojudaísmo, o modo velado como os cristãos-novos praticavam o judaísmo. Sob a vigilância da Inquisição, praticavam a religião de forma discreta ou às escondidas”, diz Ribemboim.

O próprio nome do atual estado de Pernambuco tem sua origem em um cristão-novo, Fernão de Noronha. Por 30 anos (1502-1532), o país foi arrendado para exploração do pau-brasil ao grupo mercantil deste que, segundo o autor, foi “o primeiro dono do Brasil”.

Sob comando do armador português, que nunca esteve no país, a madeira era cortada e carregada por indígenas até o porto onde ancoravam os navios que levariam o material para Portugal. “Pernambuco era um porto, e não um território. Os indígenas criavam nomes a partir da topografia e chamavam de ‘Pernambuka’ essa embocadura, que, na gramática tupi, significava ‘Boca de Fernão’.”

O local corresponde ao atual Canal de Santa Cruz, entre Igarassu e Itamaracá. O autor chegou à conclusão sobre a origem do nome do estado por meio de pesquisa cartográfica.“Acartografia de época nos dá pistas extraordinárias.”A pesquisa para o livro apoiou-se em fontes primárias, colhidas em acervos internacionais, como a Torre do Tombo, em Portugal, e o Arquivo Nacional dos Países Baixos, em Haia.

O período do criptojudaísmo olindense, que se encerrou com ainvasão holandesa, em 1630, contou com personagens fascinantes, cujas vidas são lembradas por Ribemboim. Entre vários, destaca Branca Dias, casada com o senhor de engenho Diogo Fernandes.

Ela chegou ao Brasil depois de cumprir pena de prisão imposta pela Inquisição, em Portugal, e aqui se tornou importante liderança da comunidade judaica, organizando cerimônias religiosas no engenho de Camaragibe. “Esta Branca Dias, que não tem a ver com a personagem homônima de Dias Gomes, em ‘O santo inquérito’, foi a primeira professora de moças no Brasil”, diz. Outro é Bento Teixeira, autor de “A prosopopeia”, considerada a primeira obra literária escrita no Brasil, lançada em Lisboa em 1601, após a morte do autor.

Com a chegada dos holandeses, o judaísmo passou a ser praticado livremente. Os descendentes dos cristãos-novos que aqui estavam reassumiram a fé de seus ancestrais e, reunidos à parentela que veio de Amsterdã, formaram comunidades pujantes. Foram criadas as duas primeiras sinagogas públicas das Américas, uma no Recife e outra na vizinha Cidade Maurícia, cada qual com um rabino. Recife era sede do governo holandês e Olinda, incendiada pelos invasores, fora reduzida a escombros.

O período de domínio holandês durou 24 anos e, após sua expulsão, os judeus foram obrigados a readotar o catolicismo. As famílias cristãs-novas que haviam retomado o judaísmo tiveram de abandonar a religião novamente ou praticá-la em sigilo, mais ainda do que antes. Outras retornaram aos Países Baixos.

Um grupo de 23 pessoas, entre adultos e crianças, seguiu para o vilarejo de Nova Amsterdam, na ilha Manhattan, que se tornaria embrião da futuracidade de Nova York e base da primeira comunidade judaicados Estados Unidos.

Durante os dois séculos seguintes, ocorre uma espécie de “hiato de judaísmo”. Vítimas de discriminação e perseguições, os judeus foram quase extintos no país. Ribemboim ressalva que, ainda assim, foi um período que teve consequências importantes. “Aconteceram sucessivos entrecruzamentos com não judeus — brancos, negros ou indígenas —, resultando num tipo característico nordestino, em especial no interior.”

A chegada de correntes migratórias, no século XX, revigorou o judaísmo em Pernambuco, com a criação de sinagogas, escolas, associações beneficentes e cemitério. “O perfil populacional e cultural do judaísmo pernambucano se modifica. Os judeus de origem sefardita [originários da Península Ibérica] dos primeiros tempos dão lugar aos de origem asquenaze [provenientes da Europa Central e do Leste Europeu], hoje majoritários na comunidade do Recife.”

Na contemporaneidade,ahistória dos judeus no Nordeste apresenta um fenômeno novo que éoretorno de descendentes dos antigos cristãos-novos à identidade judaica.“São pessoas que se descobriram descendentes dos antigos conversos e vêm se organizando em grupos constituídos por retornados ao judaísmo, os chamados ‘bnei-anussim’ [em hebraico, ‘filhos dos forçados’]. A internet ajudou na busca pelas suas raízes ancestrais. Esses novos judeus velhos contribuem para manter a chama do judaísmo em solo nordestino.”


Fonte: Eu & Livros – Valor Econômico, 19/07/2024, página 14