
Pauta da mulher negra ganha destaque no Prêmio Cepe
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Uma linha narrativa de sentimentos e ideias na perspectiva de mulheres negras conduz a uma espécie de biografia do cabelo no livro de estreia da jornalista, tradutora e poeta Stephanie Borges, (RJ) vencedora do IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2018, gênero poesia. “Escrevi um poema que poderia ser uma provocação para pensarmos sobre a linguagem, as imagens e os nomes aos quais queremos ser associadas”, diz a autora do título Talvez precisemos de um nome para isso [ou o poema de quem parte]. Publicado pela Companhia Editora de Pernambuco, o livro será lançado no dia 28 de junho, às 19h, na Livraria Travessa (Botafogo).
Stephanie fez uma pesquisa sobre a estrutura do fio de cabelo e percebeu que tinha encontrado um assunto que lhe permitia articular questões políticas, históricas e sociais. Esta espécie de biografia do cabelo passeia pelos mitos, gênero, preconceito e até dicas de salão, em um fôlego só, quase sem respiro, numa poesia entremeada com a prosa. Talvez precisemos de um nome para isso flui sob o comando da livre expressão do pensamento, uma linha contínua entre o sentir e o pensar.
Contundente, o texto tem um tom crítico, às vezes irônico e conduz à reflexão a respeito dos arquétipos que envolvem a temática feminina, especialmente da mulher negra e não branca, ou seriam cacheadas e crespas?
Só depois do livro pronto Stephanie definiu o título. Dois momentos foram determinantes para intitular a obra: O reconhecimento da mulher que entende não ser vista pelos outros como inteira em suas contradições, complexidades e desejos; e a inexistência de um nome para descrever a sensação de prazer de fazer cafuné numa mulher negra.
Stephanie Borges trabalhou em editoras como Cosac Naify e Globo Livros. Publicou poemas nas revistas Garupa, Pessoa, Escamandro e A bacana. Traduziu Olhares Negros: raça e representação, de bell hooks; Irmã Outsider, de Audre Lorde (Autêntica, no prelo) e ensaios da poeta Claudia Rankine (Revista Serrote 28, Apocalipse?).
ENTREVISTA
O cabelo surge como representação social e histórica da mulher negra, as cobranças sociais, as relações de poder. Foi essa linha que você pensou para construir O poema de quem parte?
STEPHANIE - A minha ideia era escrever um poema sobre um tema me permitisse misturar várias vozes e discursos que evocasse essa sensação de caos em que vivemos atualmente. Então me ocorreu que minha relação com meu cabelo sempre foi atravessada por várias conversas. Recomendações de cabeleireiros, críticas, elogios, padrões de beleza. Pessoas próximas e estranhos se sentem a vontade de comentar sobre o meu cabelo embora eu não tenha perguntando o que elas acham, ou como se sentem. Isso gerou uma série de perguntas sobre o público e o privado, sobre como o corpo de uma mulher muitas vezes é regulado a partir desses comentários: Você engordou? Emagreceu? Não vai pintar esses cabelos brancos? Também me interessava incorporar à poesia elementos que mostrassem que não é uma questão individual, que os cabelos são aparentemente banais, mas estão presentes em mitos, rituais ou prescrições religiosas. Durante a escrita, passei a me questionar sobre palavras e imagens que associamos a ideia de poder, de beleza, de feminilidade, então acabei de aproximando de mitos e personagens que nos permitem pensar os corpos das mulheres a partir de outras perspectivas que não estejam associadas a docilidade, recato, a submissão. Em vários momentos da vida ouvi que meu cabelo era revoltado, duro. Como conciliar ser uma boa mulher ter um cabelo ruim? Será o cabelo uma metáfora de outras partes que precisam ser domadas? Até que ponto se adequar a padrões totalmente diferentes do que somos não é uma forma de desaparecer? O percurso do poema se constrói a partir da escuta, da observação, da memória e de dúvidas que eu gostaria de dividir com outras mulheres que passaram muito tempo de suas vidas preocupadas com seus cabelos, com o que eles representavam na imagem que elas queriam construir de si mesmas.
Em dado momento você fala, com fina ironia: quando quiser ter filhos pense em como pode sair o cabelo das crianças. E mais adiante: Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. Como escrevê-la sem uma futilidade intolerável? Ninguém acusaria de ser fútil a biografia de um braço. Qual a reflexão que você propõe à sociedade?
STEPHANIE - O poema é perpassado por questionamentos e provocações. A minha intenção era jogar diálogos, imagens, e deixar que o leitor se reconheça ou perceba uma realidade desconhecida, porque sua experiência é outra. Eu não gostaria de explicar quais as minhas intenções, mas vou desenvolver um pouco sobre esses trechos. Venho de uma família com pessoas negras e brancas e ouvi variações de “quando quiser ter filhos pense em como pode sair o cabelo das crianças” dos meus parentes brancos e negros. Durante muito tempo isso me provocava um incômodo, como se as minhas escolhas afetivas precisassem passar pela aprovação estética dos outros e não do que me interessa num relacionamento. Anos depois eu entendi que essa ideia está associada a uma lógica de embranquecimento da nossa sociedade. Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. Como escrevê-la sem uma futilidade intolerável? Ninguém acusaria de ser fútil a biografia de um braço. É uma citação de Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida que me impactou muito. Acho que muitas mulheres gastam muito tempo, dinheiro, energia se preocupando com seus cabelos, ainda que não sejam crespos ou cacheados, a ponto de nossos cabelos terem histórias próprias. Acredito que quase todas nós podemos lembrar de um corte, de uma mudança de visual que pode ser considerado um “marco” na relação com nossos cabelos ou na nossa autoimagem.
Você se denomina poeta ou prefere não se deter a um gênero? No livro de estreia você mostra muita desenvoltura e liberdade com a prosa e a poesia. Não se prende a convenções ou regras.
STEPHANIE - Eu me apresento como poeta, tradutora e jornalista. Também gosto de me denominar leitora, porque isso é essencial na minha formação nessas três atividades. Aprendi a escrever com o jornalismo, a tradução aguçou o meu olhar e o meu ouvido para escolhas de palavras, significados, escolhas e a poesia um espaço que possibilitar articular várias ideias a partir do ritmo. O poema tem trechos em prosa porque eu queria criar contrastes na experiência de leitura. No entanto, gosto muito de poetas como Anne Carson, Claudia Rankine que fazem poesia escrevendo em prosa. Não me preocupo muito com a definição de gêneros literários, mas em como posso usá-los para dizer algo da forma mais precisa.
Em dado momento você fala muito de seres marinhos. Nós, crespas e cacheadas, negras ou não brancas, somos todas medusas? Você se referia à histórica travessia escravocrata da África pro Brasil?
STEPHANIE - A Medusa foi uma imagem que surgiu por causa dos cabelos, no entanto, lendo diferentes versões do mito, existe uma história de que o sangue da cabeça decepada por Perseu pingou no mar vermelho e “petrificou” dando origem aos corais. Descobrir essa história me fez pensar na proximidade geográfica entre a Grécia e a África, e no entanto, como o pensamento colonial nos leva a considerar uma cultura clássica e outra exótica. O poema trata muito de aparências e os seres marinhos estão ligados a esse raciocínio. Corais são animais, mas não aparentam. Águas vivas, também chamadas medusas, são predadores que matam sem diante de qualquer tipo de ameaça a sua integridade. O quanto a aparência de uma mulher – sua adequação a um padrão – determina as possibilidades e oportunidades em sua vida? A ideia da Medusa como uma figura feminina de cabelos indomáveis, de uma força tão grande que seu olhar é capaz de fixar o outro, considerada uma ameaça que precisa ser morta por um “herói”. Descobri que poetas como Sylvia Plath, Carol Ann Duffy e Louise Bogan escreveram poemas sobre a Medusa explorando ideias de mulheres monstruosas, perigosas. Existe uma associação entre o poder e a inadequação. Como se uma mulher poderosa só pudesse ser um risco e não alguém a ser admirada. Não acho que todas as crespas e cacheadas sejam Medusas, mas se quiserem, podem se tornar. O mar é muito importante para mim em termos simbólicos e afetivos. O movimento, o horizonte, a origem da vida do planeta, a travessia da diáspora, crescer numa cidade litorânea, ir embora e sentir saudades do mar. O mar também nos engana com sua aparência, guarda profundidades desconhecidas e também mistura beleza e perigo.
Qual a importância do Prêmio Cepe para você?
STEPHANIE - Receber o IV Prêmio Cepe de Literatura com meu primeiro livro foi um reconhecimento maravilhoso. Hoje as editoras que se dedicam à poesia trabalham com tiragens pequenas, trabalhos quase artesanais e o resultado são edições maravilhosas, mas que às vezes acabam restritas a um público leitor de poesia já iniciado. Acredito que a premiação crie uma curiosidade em torno de um poema com temas inusitados como cabelo, padrões de beleza, animais e monstros. A poesia que procuro fazer – seguindo a lógica de Toni Morrison de que se você quer ler um livro que não existe, deveria escrevê-lo – parte de elementos cotidianos, da linguagem da internet, de imagens inusitadas e tudo isso acaba se articulando de forma política porque ser uma mulher negra é uma disputa constante com narrativas e estereótipos que não correspondem à minha experiência. Então usar a poesia para me aproximar das contradições, das complexidades é uma maneira de tentar ampliar as referências que temos de como uma mulher negra se vê e fala por si. Numa sociedade como a nossa que ainda reconhece muito pouco as intelectuais, poetas, acadêmicas negras e suas contribuições para a literatura, a universidade e outros saberes que não passam pelo reconhecimento tradicional, receber um prêmio como esse é uma conquista individual, mas também espero que encoraje e estimule outras mulheres negras a descobrirem suas vozes, suas forma de expressão e buscarem formas de tornar esse trabalho visível. Além disso, existe o aspecto financeiro, que é importante num país onde escritores precisam desempenhar várias atividades para garantir seu sustento e produzir literatura. O prêmio contribuiu para o reconhecimento da minha produção poética, mas também para o meu trabalho como tradutora.
SERVIÇO:
Lançamento do livro Talvez precisemos de um nome para isso [ou o poema de quem parte]
Quando: 28 de junho
Horário: 19h
Onde: Livraria Travessa (Botafogo)
Preço: R$ 20,00 (versão impressa) e R$ 6,00 (e-book)
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