Por Adelto Gonçalves
I
Um romance que recupera o que teria sido a visita do aventureiro inglês Richard Francis Burton (1821-1890), cônsul de seu país de 1865 a 1869 no porto de Santos-SP, à Januária, cidade situada às margens do rio São Francisco, nos limites com o Nordeste, em setembro de 1867, é o que o leitor vai encontrar no novo livro do jornalista Eliezer Moreira, Crônica da passagem d
É de se notar que Burton, soldado, erudito que falava mais de vinte idiomas, escritor, agente secreto, diplomata e tradutor, viveu em quatro continentes e fez também uma viagem em busca das nascentes do rio Nilo, uma peregrinação à Meca e descobriu e traduziu o Kama Sutra, texto indiano sobre o comportamento sexual humano, aventuras que foram retratadas no filme As montanhas da lua (
Em Crônica da passagem do ingl
A crônica tratava da visita de dois dias e meio feita pelo explorador britânico a Januária, em meio a uma viagem exploratória que incluía passagens por outras regiões de Minas Gerais e Bahia, que coincide com o momento em que Arcanjo e o Ballard tinham um duelo marcado para decidir quem haveria de ficar com o amor de Quirina, episódio que é mantido em suspense até as últimas páginas. E cujo desfecho torna-se surpreendente e que não se conta aqui para não se estragar o prazer da leitura. Apenas se adianta que a bela Quirina acabaria por não ceder os seus encantos a nenhum dos dois apaixonados, mantendo-os subjugados por sua sedução até o final.
A utilização de um alter ego, aliás, é um recurso a que o autor já havia recorrido em seu romance anterior, Olhos bruxos (
Já o seu novo romance assume também características de memorialismo, pois o autor viveu em Januária e, como confessa, procurou fazer um retrato fiel daquela comunidade e dos personagens que seriam inspirados em pessoas que moravam lá ao tempo da busca da crônica perdida, inclusive com seus nomes reais, e de algumas passagens por elas vividas.
Em outras palavras: a história conta o fugaz envolvimento do erudito inglês, também mineralogista e antropólogo, com acontecimentos locais, a uma época em que havia no ar a ameaça da convocação de “voluntários” para a Guerra do Paraguai (1864-1870), em meio as consequências para aquela modesta sociedade da exaustão das minas de ouro, diamantes e metais preciosos antes tão férteis, e o começo da implantação da indústria de ferro na região, o que acabava por atrair a presença de estrangeiros.
De passagem, fica-se sabendo que, ao tempo, o jovem que fosse de família de algumas posses sempre podia escapar do recrutamento “voluntário” para as forças que iriam combater o ditador paraguaio Solano Lopez (1827-1870), desde que enviasse um escravo em seu lugar. Foi o caso do negro Arcanjo, que, ao voltar do Paraguai, sentia-se homem livre com base numa lei do Império segundo a qual o fato de ter permanecido, por consentimento do seu senhor, numa terra onde a escravidão tivesse sido abolida, o escravo ganhava a condição de liberto.
Ao acompanhar os diálogos entre as personagens, que procuram recuperar o idioma português que se falava à época, entremeado por algumas palavras de origem tupi-guarani e outras do jargão africano proveniente de várias etnias, o leitor é atraído mesmo pelos lances provocados pelo interesse sexual de dois homens pela sensual Quirina, cuja naturalidade é desconhecida.
Afinal, quando ela se descobre no mundo, já era órfã de mãe e vivia num mocambo, ou quilombo, na região de Januária. Sua mãe e seu pai, sim, eram baianos e descendentes dos malês fugitivos da Bahia que ali haviam aportado. E seria ainda descendente de Luísa Mahin, líder da Revolta dos Malês, rebelião de caráter racial contra a escravidão e a imposição da religião católica ocorrida em Salvador, em janeiro de 1835, e que assume o papel de lutadora da causa abolicionista e dos direitos dos escravizados.
Para Burton, no entanto, Quirina era, sim, uma hauçá, devido ao patuá que ela trazia no pescoço, com uma tirinha de couro no seu interior na qual estava gravado a ponta de ferro quente um versículo do Corão. Ao final, porém, o repórter Heleno, depois de muitas pesquisas, concluiria que Luísa Mahin não seria hauçá, mas da etnia jegê-nagô, o que o levaria a descartar a hipótese de que Quirina seria neta dela.
Com uma linguagem límpida, sem passagens herméticas, temperada pelo sentimento poético, em que o romanesco se mistura ao memorialismo, o autor não deixa de mostrar, talvez de maneira involuntária, a influência que recebe de Machado de Assis, ao construir personagens planas, que são descritas de maneira direta, não só nos aspectos físicos
Enfim, como diz no prefácio a historiadora e ensaísta Isabel Lustosa, “trata-se de um livro completo no sentido de ser capaz de proporcionar ao leitor prazer e conhecimento, ao mesmo tempo em que recupera um passado que, mesmo filtrado pelas lentes da ficção, está evidentemente fundamentado em cuidadosa e profunda pesquisa”. Melhor recomendação seria impossível.
Eliezer Moreira (1956), escritor e roteirista de cinema e TV, tem mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atuou como roteirista e repórter na TV Brasil e na TV Educativa, no Rio de Janeiro. Nasceu em Cocos, no interior da Bahia, cidade que não chegou a conhecer, pois de lá saiu com a família com apenas um ano de idade e nunca mais voltou.
Cresceu em Januária, onde viveu até os 23 anos, naquela vasta região de Minas Gerais situada entre as divisas de Bahia e Goiás, onde no passado – e ainda hoje, sob outras formas – se davam as velhas guerras por domínio territorial e político, envolvendo os coronéis e seus jagunços, a mesma região mítica que João Guimarães Rosa (1908-1967) imortalizou em Grande sertão: veredas (
É autor também do romance A pasmaceira (Rio de Janeiro, Editora Record, 1990), vencedor do Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores (UBE), e que foi publicado em Portugal com o título Um homem querendo vende
______________________________
Crônica da passagem do inglês, de Eliezer Moreira, com posfácio de Isabel Lustosa. Recife, Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), 236 páginas, R$ 70,00 (edição impressa), R$ 35 (e-book)2024. Site: http://www.editora.cepe.
Fonte: Blog DasCulturas - Lisboa (09/07/2024)